Sobre a produção fotográfica de um funcionário público nascido em Cabo Verde
António Carreira (1905-1983) nasceu em Cabo Verde e viveu durante várias décadas na Guiné sob domínio português, onde se tornou um funcionário colonial a partir de inícios da década de 1920. Em meados da década de 1950, deixa a administração colonial e passa para o sector privado, tornando-se gerente da Casa Gouveia, uma empresa que geria o porto de Bissau. Em 1959, Carreira informa o exército português de uma greve de estivadores – a lei ditava a ilegalidade da greve. Depois de uma grande greve de estivadores dois anos antes, onde o exército português saiu humilhado, esta intervenção militar acabou por ficar conhecida como o massacre de Pidjiguiti (1959). A sua implicação nos acontecimentos tornou impossível permanecer na Guiné, e levou-o a mudar-se para Lisboa, onde se associou ao projecto recentemente criado do Museu de Etnologia do Ultramar.
O Museu de Etnologia do Ultramar foi um projecto colonial tardio, concebido para ser desenvolvido em paralelo com o Centro de Estudos de Antropologia Cultural, ambos sob a direcção de Jorge Dias e sob a tutela da Junta de Investigações do Ultramar, órgão estatal que coordenava a pesquisa nos então territórios ultramarinos, até 1953 designados como colónias. Dias interessou-se pela experiência prévia de Carreira no aparelho burocrático do estado colonial português, como também pela sua experiência de trabalho de campo na Guiné. Carreira esteve envolvido em várias missões financiadas pelo estado português nas colónias ultramarinas, nomeadamente 5 missões etnográficas por todo o território de Angola na década de 1960.
A altura em que essas missões decorreram, ou mesmo o desenvolvimento do projecto do Museu/Centro de Investigação, demonstram como o estado português colonial visava manter o seu domínio – a guerra de libertação em Angola começou em 1961.
As fotografias de campo de Carreira produzidas nas missões em Angola, nunca se tornaram uma coleção autoral – foram integradas num arquivo fotográfico mais vasto, de forma a poderem constituir um recurso para as pesquisas da equipa do museu e, eventualmente, pela comunidade científica mais vasta. No entanto, as fotografias de campo desse arquivo, incluindo as de Carreira, acabaram por ser usadas apenas ocasionalmente em publicações.
O arquivo reúne fotografias de campo de várias fontes, tendo a maior parte delas sido produzidas no contexto de missões etnográficas levadas a cabo por vários dos investigadores e colaboradores do museu.
A organização do arquivo, envolvendo vários formatos, é complexa. As fichas de campo de Angola, provas impressas anotadas com dados de campo específicos estão circunscritas, isto é, separadas de outras regiões geográficas, tendo sido organizadas por temas e não por ordem da sua produção. Os negativos estão organizados por formatos, implicando a junção de negativos de missões em diferentes países.
Carreira recorreu a um método específico para a produzir fotografia de campo o qual foi partilhado por outros colegas do museu: usou duas câmeras com diferentes tipo de película. Ao serem arquivados, os materiais provenientes dessa práctica deram origem a uma colecção densa em termos de formatos e de catalogação.
Estes factores tornaram necessário desenhar um panorama sobre todas as missões etnográficas aos então territórios portugueses ultramarinos desde da fundação do projecto do museu (pode aceder aqui a um diagrama de síntese).
Foi possível reconstruir uma aproximação às missões de Carreira em território angolano, ao cruzar a análise das suas fotografias de campo com documentação produzida durante a missão, que existe no arquivo histórico do Museu. Aceda a esse esboço das missões aqui.